“Os
homens que Pisaram na Cauda do Tigre” do mestre Kurosawa falava de valores como
honra, dignidade, lealdade, talvez por isso tenha ficado na masmorra durante um
tempo antes de ser liberado pelos censores. Os censores estão em todos os
lugares, nas esquinas, nas escolas, no trabalho, na cidade, no campo e às vezes
dentro de nós mesmos.
- Quer dizer que você está fazendo o dever de casa
enquanto faço a chamada.
- Não tenho tempo professora, saio daqui e trabalho até
tarde numa janela de frente pra rua, onde passam ônibus, caminhões e minha
infância sem que eu a veja.
- Você ainda reclama. Vá para o quadro e escreva cem
vezes o que eu ditar.
A
professora não ensinava democracia. Ela não sabia o que era democracia e
gostava de atirar o apagador em nossas cabeças. Eu não
sei o que é democracia, eu não conheço a coisa mágica que chamam de
democracia. Uma vez eu estava numa manifestação trabalhista. Não
havia ninguém nas ruas. As lojas estavam fechadas. Era uma greve. As
reivindicações são sempre muitas, pois nunca são ouvidas. Como em todas
as
manifestações, os ânimos estavam exaltados, mas tudo estava sob controle
até
que eles apareceram, os da direita e os da esquerda, eles dizem que são
diferentes, mas no fundo são iguais e eles iriam atirar, sempre
atiram e nós éramos o alvo perfeito. Recuamos correndo pela rua, alguns
amigos
caíram, não tínhamos como ajudá-los, pois não tínhamos um opala, um
gordini ou uma mercedes, ou uma cópia autenticada dos direitos humanos,
só tínhamos nossa
carteira de trabalho e um cartaz com os dizeres:
“Não somos invisíveis, não
somos almas ocas e queremos nossos direitos.”
Durante nossa fuga pela rua
margeada por muros altos de concreto percebi que seríamos capturados, percebi
que estamos mortos, que estamos todos mortos.
Um dia
levantei antes do sol, tirei minha mochila do armário e peguei a estrada que
passava entre os abetos e os cactos floridos, eu podia ouvir a canção do vento
cortando o céu onde as estrelas se moviam virando o rosto para não ver a
liberdade em estado de sítio. Nessa viagem psicodélica eu imaginava que a
estrada fosse infinita, que longe dali não haveria alamedas, porões, pátios
vazios, números de registros ou salas decoradas, mas a estrada terminava no
tempo que eu teria que bater na porta dos dias que nos esperam.
- Aonde vai?
- Vou pra longe, criar galinhas, plantar tomates e
pimenta.
- Perdeu a coragem? Está fugindo da luta?
- Não. Cansei de lutar, já tenho muitas marcas, muitas
marcas.