Canfranc: A voz e o silêncio
Autor:
Jorge Pimenta
Jorge
Pimenta é Escritor Português, Natural de Braga e Professor
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blog do Jorge Pimenta
Poderia
ser a fotografia de um filme de espionagem, rodado numa paisagem da alta
montanha, onde o silêncio é o manto que liga a voz do passado à do presente. A
bruma despe a vertigem e pousa, lentamente, na humidade do vale, onde um
palácio de linhas clássicas se estende ao longo de mais de 200 metros de
memórias, agora estilhaçadas como as janelas e as portas que lhe alimentam a
sede de luz e cor. Em seu redor, trilhos ferroviários, composições abandonadas,
pavilhões devolutos e maquinaria a apodrecer na humidade dos Pirenéus. Uma cidade
fantasma, eis o que a gare e o grande hotel de Canfranc são, hoje. Ainda assim,
das suas paredes escorre História, pactos secretos, negócios escuros que
revolvem os bolsos de uma das fases mais hediondas da História da humanidade: o
nazismo.
Já
território espanhol, paredes-meias com a fronteira francesa, Canfranc foi,
entre 1942 e 1945, sede de alguns dos movimentos mais secretos vividos em pleno
conflito mundial. Para além de ponto estratégico para a mudança de bitola dos
comboios espanhóis para os franceses, esta gare fotografou, ainda, durante o
período da II Guerra Mundial, a vida quotidiana dos agentes secretos e
militares alemães, registou ações de fuga de judeus clandestinos para Espanha,
Portugal e além-mar, e testemunhou, inclusive, a evasão de nazis que procuravam
escapar a um destino judicial certo logo após o termo do conflito bélico.
Ao tempo,
Espanha gozava de um estatuto de pretensa parcialidade, ainda que o
comprometimento com os alemães, poucos anos antes, na Guerra Civil Espanhola,
onde se posicionaram ao lado de Franco, selando um estatuto dúbio. Foi ao
ostentar essa capa de mentira que Canfranc funcionou como pivô de trocas
comerciais entre Portugal-Espanha-Alemanha-Suíça, de entre as quais quase uma
centena de toneladas de ouro nazi pilhado aos judeus que, um pouco por toda a
Europa ocupada, agonizavam em campos de concentração. A presente alegação
tornou-se tão mais legítima quanto se sabe, hoje, que foram os próprios alemães
quem controlou a alfândega internacional de Canfranc durante o período da
Guerra; acrescem os documentos encontrados por Jonathan Diaz, na gare, em 2002,
entretanto divulgados, e que reiteram a tese da rota do ouro em Canfranc:
toneladas de ouro nazi chegavam a Canfranc por comboio, provenientes da
Alemanha, da Holanda e da Bélgica, com destino a Espanha e Portugal, que ora os
compravam, ora os recebiam em troca de favores que alimentavam a máquina de
guerra nazi (por exemplo, o envio espanhol de volfrâmio extraído de minhas
galegas, matéria indispensável para a defesa dos tanques alemães); daí eram
dispostos em camiões que levariam a mercadoria até Madrid e Lisboa.
Mais de
60 anos volvidos sobre o frenesim militar, pautado pelo secretismo e glamour,
a gare e o hotel de Canfranc fecharam a boca para sempre. Já não há militares,
movimentações ferroviárias, jantares festivos no grande hotel, ou
documentos secretos guardados nas gavetas; apenas o esqueleto, bem vivo, do que
restou de toda a operação da vergonha e que os historiadores, os caçadores de
fotografias ou os mais curiosos perseguem como um tesouro a não desperdiçar.
Até porque há silêncios que dizem e os lugares, esses, respiram bem para além
da sua materialidade.
FONTE: BLOG:
VIAGENS DE LUZ E SOMBRAS